segunda-feira, 20 de abril de 2009

FELA KUTI

Fela Kuti: afro-beat é compromisso

por Ramiro Zwetsch

Quem teve a sorte de assistir ao vivo, pirou. Foi o caso de Bootsy Colins - lendário baixista do funk, que acompanhou tanto James Brown quanto os grupos Parliament e Funkadelic (ambos liderados pelo lunático George Clinton). "Fela apareceu e quebrou tudo. Eu nunca tinha assistido ou sentido nada igual. Foi incrível e eu acho que tudo aquilo se tornou uma parte de mim."

Bootsy fala sobre o músico nigeriano Fela Anikulapo Ransome Kuti que, como bem descreveu, costumava causar estrago pelos palcos por onde passava. O próprio James Brown também ficou impressionado quando o viu tocar (provavelmente, em alguma data perdida na década de 70). "Quando estivemos em Lagos, visitamos o clube de Fela Ransome Kuti, o Afro-Spot. A banda dele tinha um ritmo forte. Acho que Clyde absorveu um pouco daquele som no seu jeito de tocar ", escreveu em sua autobiografia, referindo-se a Clyde Stubblefield, um dos bateristas que tocou por mais tempo com Brown.

As lembranças dos dois músicos (ambos figuras essenciais na concepção do funk norte-americano) ilustram uma das mais saudáveis trocas de referências que já brindaram a música - já que o próprio Fela Kuti não escondia a influência que o soul de James Brown exercera na sonoridade de sua primeira banda, The Koola Lobitos (formada em 1961 e rebatizada, oito anos depois, para Nigeria 70).

O batera Tony Allen, fiel escudeiro de Fela, também guarda recordações do encontro com os JB's. "Eles foram ao nosso concerto e o diretor musical de James Brown sentou-se bem ao meu lado. Enquanto ele observava e tentava imitar o movimento dos meus pés, a mim restava somente cair na gargalhada", disse em uma entrevista à revista Wire.


Garanhão nigeriano
Naquela altura, Fela já tinha iniciado uma trajetória sem precedentes na música. Tornou-se, no mínimo, o artista mais importante da Nigéria. Espremeu o funk e o jazz, adicionou tempero africano e garantiu o sabor do caldo com o seu próprio talento e a extrema competência dos músicos que formaram suas big bands. Inventou o afro-beat. Gravou mais de 80 discos em 30 anos. Deu visibilidade para Tony Allen, um dos mais criativos bateristas em atividade. Desafiou o governo. Decidiu, em 1974, que sua residência seria um estado independente e lhe deu o nome de república Kalakuta. Depois de meter a boca nas autoridades em um show de 77, viu sua mãe morrer durante uma invasão policial à sua casa - a senhora Olufunmilayo Ransome-kuti, então com 77 anos, foi arremessada pelos invasores do primeiro andar de Kalakuta. Se não bastasse, Fela ainda ficou 27 dias no xadrez. Em 1978, casou em uma mesma cerimônia com 27 mulheres (muitas delas dançarinas e cantoras de sua banda) e batizou todas com seu sobrenome: Anikulapo-Kuti. Se candidatou, em 1979, à presidência da república da Nigéria. Candidatura rejeitada. Foi preso de novo. Dessa vez, em 1984, amargou 20 meses de reclusão. Morreu de Aids em 1997.


Batidas sem fronteiras
Paralelamente a tudo isso, Fela construiu uma obra absurda. Destacar um só álbum é até leviano - e a leviandade, aqui, chama-se "Beasts Of No Nation". Gravado em 1989, o disco guarda importância simbólica justamente por surgir em um período distante da fase áurea da carreira do músico. Foi na década de 70, com a retaguarda da banda Africa 70 (formação com pequenas variações em relação à Nigeria 70), que o músico disparou a maioria esmagadora de seus clássicos: "Lady" (72), "Colonial Mentality" (77), "Shuffering & Shmiling" (78), "Zombie" (76), "No Agreement" (78) são alguns exemplos.

Nenhuma delas se parece, no entanto, com a faixa-título de "Beasts Of No Nation". Especialista na construção do grooves sólidos e duradouros, Fela gostava de sustentar a introdução instrumental por 10 ou 15 minutos - inserindo a voz somente do meio para o final das músicas. Para isso, contava sempre com a levada sincopada de Tony Allen, linhas de baixo pulsantes e pontuação agressiva dos metais.

"Beasts Of No Nation" (12:42 de duração) traz a voz de Fela já nos primeiros segundos e o elemento que demora a aparecer, aqui, são os sopros. Com harmonização dos teclados em evidência, o grupo Egypt 80 (um conglomerado de 30 músicos, alguns remanescentes das bandas Nigeria 70 e Afrika 70) conseguem submeter a herança do afro-beat dos anos 70 para uma sutil variação - que se percebe também, na intervenção das seis vozes de apoio e no timbre do cantor, mais suave em alguns momentos.

Suavidade que vocifera alguns dos versos mais ácidos do nigeriano. Já na capa do álbum, o músico já indica para quem é o recado: a ilustração mostra lideranças do período (o presidente norte-americano Ronald Reagan, a primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher e o presidente da África do Sul, P.W. Botha) caricaturizadas como vampiros, com sangue saindo por suas bocas. A contemplação da capa desperta a curiosidade - tão óbvia quanto inevitável - de tentar adivinhar qual seria o tom da crítica do músico aos líderes de hoje, se ele estivesse vivo. Como reforço à imagem estampada na embalagem do disco, ele dá nome às bestas na letra em uma espécie de despedida de um dos discursos mais politizados da música - já que, oito anos depois, Fela seria derrubado pelo HIV.

Do outro lado do vinil, 'Just Like That' (22:54) remete ao período mais fértil do afro-beat e recupera a intensidade dos metais. O sax de Fela dispara em solos e só descansa quando o músico resolve cantar.


Hip Hop, Fellas
A química rara de groove com engajamento chamou atenção de algumas das figuras mais inventivas do hip hop atual. "Eu respeito o esforço de Fela em tentar promover uma mudança positiva por intermédio de sua música. Seu som é um dos melhores que eu já ouvi", disse certa vez, por exemplo, Adam Youch dos Beastie Boys.

Uma boa amostra da afinidade do hip hop com a música do nigeriano está no disco "Red Hot & Riot" ( http://contest.mcarecords.com/redhotriot/jukebox/), da organização Red Hot -- que reúne alguns dos artistas mais instigantes do movimento executando versões para músicas de Fela. Uma das melhores faixas do álbum, "Kalakuta Show", por exemplo, reúne Mixmaster Mike (Beastie Boys), Lateef (Latrix) e Gift of Gab, do Blackalicious -- grupo que buscou em "Colonial Mentalaty", o sample para uma de suas melhores músicas:, "Smithozian Institute of the Rhyme", do disco "Nia" (2000). O duelo inspirado entre dois dos rimadores mais criativos do rap atual ganha ressonância com a hipnose instrumental do afro-beat.

A outra faixa fundamental do disco promove o encontro dos rappers Talib Kweli e Dead Prez com o brazuca Jorge Ben Jor e o grupo Positive Force (conglomerado de ex-integrantes das bandas de Fela). A versão para 'Shuffering & Shmiling" surprende em vários aspectos. Primeiro, deve-se dar o braço a torcer ao produtor da faixa - que conseguiu extrair de Ben Jor o mesmo falsete dos tempos em que se chamava só Ben (êxito só comparável à participação do mesmo Jorge na música "Malungo", da Nação Zumbi pós-Chico Science). No mais, a fusão bem dosada de rap, metais felakutianos e guitarra benjoriana explode nos ouvidos como massagem sonora.

"Red Hot & Riot" vale, no mínimo, por essas duas músicas e serve de petisco para o banquete que a vasta discografia de Fela Kuti oferece. Aos durangos, resta uma boa pesquisa no Kasaa ou genéricos. Quem quiser os discos, em CD ou vinil, terá que desembolsar o desgostoso preço da importação - mas, pode ter certeza, o deleite vale o investimento.

Links relacionados:
http://www.redhotriot.com/
http://www.felaproject.net/
http://www.ghotek.com/fela/

Nenhum comentário:

Postar um comentário